segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Psicose 50 anos - por Roberto Muggiati

 Cena em que a personagem de Janet Leigh sofre na famigerada cena do chuveiro.

Créditos da Gazeta do Povo - Caderno G de 31/07/2010.

Rio de Janeiro - Alfred Hitchcock tinha 60 anos no final de 1959 quando começou a rodar o 47.º dos seus 53 filmes. Foi uma assistente de produção quem chamou sua atenção para o livro recém-publicado Psycho, de Roberto Bloch, baseado num as­­sas­­sino serial de Wisconsin.
Hitchcock comprou os direitos de filmagem anonimamente por US$ 9 mil, mas a Paramount rejeitou a ideia. Conhecedor de todos os truques e manhas dos magnatas de Hollywood, ele fez uma contraproposta tentadora: não cobraria seu cachê de diretor (250 mil dólares) em troca de 60% da bilheteria do filme.
A Paramount alegou que todos seus estúdios estavam ocupados em outras produções; Hitchcock propôs filmar nos estúdios da Universal-International, e garantir a distribuição pela Paramount, que não fazia a menor fé no projeto, mas aceitou.
Produzido ao custo de 800 mil dólares, Psicose tornou-se o maior sucesso de bilheteria de Hitchcock, fazendo dele um multimilionário. Rodado de 11 de novembro de 1959 a 1.º de fevereiro de 1960 (80 dias), revelou Hitchcock também como um exímio financista. Ele diminuiu os custos filmando em preto e branco com uma equipe compacta de tevê (a mesma do seu programa Alfred Hitchcock Presents). Pela glória de trabalhar com Hitchcock, Anthony Perkins e Janet Leigh aceitaram cachês mais baixos, respectivamente 40 e 25 mil dólares. O cerne do filme se passa nos estúdios da Universal, onde Hitchcock fez construir uma estrutura vertical (a casa sinistra da “mãe” de Norman Bates, no estilo “gótico californiano”) e outra horizontal (o Bates Motel: “Doze quartos, doze vagas... e doze chuveiros.”) Até hoje os prédios são uma das maiores atrações para os turistas que visitam os estúdios da Universal City.

Visão humana
Outros destaques de Psicose são o eficiente roteiro de Joseph Stefano (seu segundo trabalho para cinema), os títulos e a assessoria visual de Saul Bass, e a envolvente trilha sonora de Bernard Herrmann. Mas a estrela maior de Psicose foi a cinematografia. Hitchcock usou lentes de 50mm em câmeras de 35mm — um recurso que imitava a visão humana normal e aumentava o envolvimento do espectador com o filme.
O cineasta esmerou-se também nos assassinatos da heroína (no chuveiro do motel) e do detetive (na escadaria da velha casa). Como o próprio Hitchcock resumiu: “Num filme deste gênero é a câmera que faz todo o trabalho”.
Hitchcock rodou Psicose na vi­­rada dos anos 50 para os 60, a década que trouxe transformações profundas na área dos costumes. Sintonizado com as mudanças no comportamento humano ao longo de 35 anos como diretor de filmes, ele soube penetrar nas brechas do código de censura da indústria cinematográfica americana e cometer algumas transgressões, fundamentais para o filme. A cena do chuveiro é uma delas.
Na abertura da história, Ma­­rion Crane (Janet Leight) é vista num quarto de hotel de sutiã e anágua (a imagem do poster oficial do filme). Seu amante, Sam (John Gavin) aparece de peito nu. No famoso livro de entrevistas dos dois cineastas, François Truffaut comentou com Hitchcock que essa era a única cena de uma mulher de sutiã em seus mais de 50 filmes.
Hitchcock explicou: “Eu sentia a necessidade de rodar a primeira cena desta maneira, Janet Leigh de sutiã, pois o público muda, evolui. A cena clássica do beijo sensato hoje seria desprezada pelos jovens espectadores e eles teriam a tendência de dizer: ‘É careta...’”

Privada
Também pela primeira vez um filme mostrou um vaso sanitário, não só na sua nudez explícita, mas com a descarga em ação, vista (e ouvida) em close. Marion tenta se desfazer de um bilhete que rasgou, depois de escrever. Este pedaço do bilhete será a prova de que Marion esteve no motel; no livro original, a prova é um brinco en­­contrado no banheiro.
Outras diferenças: no livro, Norman Bates é mais velho e mais agressivo, alcoólatra e repulsivo; Hitchcock pediu ao roteirista, Stefano, que o tornasse mais atraente e mais simpático. O clima de romance entre o amante e a irmã de Marion, no filme, passa a ser mera amizade. No livro, o detetive Arbogast morre no vestíbulo da casa; no filme, é apunhalado no alto da escada e cai de costas até o chão numa cena espetacular que deve muito à criatividade cinematográfica de Hitchcock. No livro, a cena do chuveiro é bem mais violenta: Marion tem a cabeça decepada.
Como era de se esperar, Psicose teve problemas com os censores. Alguns alegaram ter visto um dos seios de Janet Leigh na cena do chuveiro. Hitchcock deu um tempo e exibiu a mesma cena, inalterada, dias depois: quem tinha visto, não via mais, e vice-versa.
A cena foi aprovada depois que ele concordou em cortar uma tomada que mostrava as nádegas da dublê de corpo de Janet Leigh. O casal de amantes no quarto de hotel na abertura do filme também incomodou os censores. Hitchcock concordou em refilmar a abertura caso os censores aprovassem a cena do chuveiro. Os censores não compareceram no dia da refilmagem e ele deixou a abertura como estava.
Fora dos Estados Unidos, Hitch­­cock também teve de alterar várias cenas, principalmente a do chuveiro. Em Cingapura ela passou sem problemas, mas o assassinato de Arbogast e uma tomada do ca­­dáver da mãe foram cortados. Na Inglaterra, proibiram os detalhes de Norman lavando as mãos sujas de sangue na pia.
O próprio Hitchcock teve dúvidas se não teria passado dos limites, particularmente na tomada final em que sobrepõe a imagem do crânio da mãe no rosto de Anthony Perkins. Algumas cópias do filme continham o efeito ma­­cabro, outras não.

Minimização
A música também desempenha um papel vital em Psicose. Responsável pelas trilhas mais significativas de Hitchcock, Bernard Herrmann não aceitou um cachê me­­nor, mas adaptou-se ao orçamento reduzido compondo para uma orquestra só de cordas, abrindo mão de uma sinfônica completa. Esta minimização expressiva foi a sua maneira de refletir a cinematografia em preto e branco do filme.
Os violinos guinchados elevam ao auge a tensão na cena do chuveiro, com sons de pássaros que evocam as aves empalhadas e sinalizam ao espectador que é Norman, e não sua “mãe”, quem golpeia com aquela faca. Hitchcock não queria música nesta cena mas, quando Herrmann lhe mostrou um esboço, o diretor comprou a ideia. Tempos depois, Hitchcock afirmaria que “33% do efeito de Psicose foi devido à música”.
O sucesso de Psicose deveu muito à estratégia promocional montada pelo próprio Hitchcock. Mandou comprar todas as cópias existentes do livro de Robert Bloch. Seu lema era: “O segredo é a alma do negócio”.
Todos os funcionários que participaram das filmagens tiveram de assinar uma promessa de sigilo absoluto. O público devia ignorar tudo sobre a história, particularmente o final. Janet Leigh e An­­thony Perkins foram proibidos de dar as costumeiras entrevistas à mídia por medo de que revelassem o enredo. Até a imprensa não teve as costumeiras sessões prévias e foi obrigada a assistir ao filme nos cinemas com o público.
A imposição mais contestada de Hitchcock às salas de cinemas foi proibir que o público entrasse depois de iniciado o filme. (Quando filas imensas se formaram já nos primeiros dias de exibição, os donos de cinema não discutiram mais.)
A exigência de Hitchcock se devia não só ao fato de que a heroína morria na primeira metade do filme (e o “herói” Norman Bates só aparece na tela depois da primeira meia hora, num filme de 109 minutos), mas também ao encaminhamento da ação pelo prisma da “mãe” de Norman Bates e ao impacto da revelação, já quase ao final do filme, de que ela havia morrido oito anos antes e não passava de um cadáver empalhado, como os pássaros que ornamentavam o Bates Motel.

Número um
Psicose foi lançado nos Estados Unidos em 16 de junho de 1960 (no Brasil em 25 de agosto do mesmo ano). Tem-se uma ideia da sua apreciação nas listas dos 100 Mais dos 100 Anos de Cinema do American Film Institute: Thriller: 1.º; Vilão: 2.º (Norman Bates); Trilhas sonoras: 4.º; Cem Melhores Filmes: 14.º; Frases de Filmes: 56.º (“O melhor amigo de um rapaz é sua mãe”).
As comemorações do cinquentenário incluem o relançamento do filme em cinemas do mundo inteiro, exibições pela tevê e o lançamento de uma edição especial da Universal em blu-ray, em 18 de outubro de 2010.
A palavra final fica com o mestre. Nas entrevistas a François Truffaut, Hitchcock confessa: “Minha principal satisfação é que o filme agiu sobre o público e esta é a coisa a que eu me agarrava muito. Em Psicose, o assunto me importa pouco, os personagens me importam pouco; o que me importa é que a junção dos trechos de filme, a fotografia, a trilha sonora e tudo aquilo que é puramente técnico puderam fazer o público urrar. Creio que é uma grande satisfação para nós utilizar a arte cinematográfica para criar uma emoção de massa. E, com Psicose, cumprimos isso. Não foi uma mensagem que intrigou o público. Não foi uma grande interpretação que transtornou o público. Não foi um romance muito apreciado que cativou o público. O que comoveu o público foi o filme puro”.


 Cena mostra Norman Bates (Anthony Perkins), carregando para fora do banheiro o corpo de Marion Crane (Janet Leigh)

A maldição

Os atores Anthony Perkins e Janet Leigh viveram de certo modo à sombra dos personagens do filme até o fim de suas vidas.
Um filme com uma carga tão grande de violência e terror não deixaria de marcar aqueles que participaram mais diretamente da sua produção.
A (anti)heroína Janet Leigh até sua morte (em 2004, aos 77 anos) receberia cartas e telefonemas amea­­çadores detalhando o que fariam com Marion Crane, sua personagem no filme. Uma destas cartas foi tão “grotesca” que exigiu a intervenção do FBI, que acabou localizando os autores. Mas Janet Leigh ainda fez filmes importantes, entre eles A Marca da Maldade (1958), dirigido por Orson Welles, contracenando com Charlton Heston, Marlene Dietrich e o próprio Orson; e Sob o Domínio do Mal (1962), dirigido por John Frankenheimer, ao lado de Frank Sinatra e Laurence Harvey.

Conflito
Já Anthony Perkins não teve a mesma sorte. Galã promissor, figurando em três filmes em que fazia o amante mais jovem de estrelas co­­mo Sophia Loren, Ingrid Bergman e Melina Mercouri, ficou atrelado para o resto da vida ao papel de Norman Bates. Orson Welles o colocou no papel de Joseph K em O Processo (1962), ao lado de Jeanne Moreau, Romy Schneider e Elsa Martinelli — e do próprio Welles — mas o filme foi um fracasso.
Ainda assim, Perkins sempre afirmou que seu papel em Psicose valeu a pena e jamais o recusaria, ainda que pudesse voltar atrás. Sexualmente conflitado — assim como o personagem que interpreta —, Perkins confessou que se sentia nervoso diante de mulheres e resistira a tentativas de sedução por Jane Fonda e Brigitte Bardot.

Tragédias
Apesar de rumores sobre um caso com o ator Tab Hunter, Perkins ca­­sou em 1973 com a fotógrafa Berry Berenson, irmã da atriz Marisa Be­­renson. Tiveram dois filhos, o ator Oz Perkins e o roqueiro Elvis Perkins.
Perkins contraiu aids por transfusão de sangue e morreu em 1992. Sua viúva, Berry, morreria no vôo 11 da American Airlines, num dos aviões que se chocaram contra as Torres Gêmeas de Nova York em 11 de setembro de 2001, um dia antes do nono aniversário de morte do marido.



Curiosidades

São apenas três minutos de filme, mas duram uma eternidade. No Bates Motel, Marion Crane re­­cuperou o equilíbrio emocional e resolveu devolver os 40 mil dólares que roubara. Tira a roupa para tomar um reconfortante banho de chuveiro, que é também um ritual de purificação. Mal começa a lavar o corpo sob a ducha é atacada com oito punhaladas mortais de uma faca de dois gumes. O assassino, vislumbrado através da água do chuveiro, parece uma mulher, supostamente a mãe de Norman.
Nunca uma cena de cinema foi tão discutida e dissecada, dando origem a vários livros, um deles especificamente sobre o episódio, The Girl in Alfred Hitch­­cock’s Shower (2010), de Robert Gray­­smith, que afirma que a dublê de Janet Leigh, Marli Renfro, é o corpo que aparece em muitas cenas dentro do chuveiro. Já a própria Janet, no livro de 1995 Psycho/Behind the Scenes of the Classic Thriller, afirma: “Inquestionavelmente, sem nenhuma dúvida, eu estive naquele chuveiro durante sete dias muito mo­­lhados. Fiquei naquele chuveiro tanto tempo que minha pele começou a parecer uma ameixa seca”. A dublê foi usada quando Norman retira o corpo do banheiro, o embrulha na cortina de plástico e o joga no porta-malas do carro de Marion.

Outra lenda a ser desfeita sobre a famosa cena: Hitchcock não botou Janet Leigh sob água gelada para exacerbar sua reação de pânico. Segundo ela, o diretor foi bastante generoso com o fornecimento de água quente. Os gritos no episódio são todos de Janet — e altamente convincentes. A cena foi filmada em sete dias, de 17 a 23 de dezembro de 1959. Dura pouco menos de três minutos, exigiu diversas câmeras distribuídas em 77 ângulos diferentes e incluiu 50 cortes. O sangue que escorre até o ralo não é o costumeiro sangue cenográfico, mas calda de chocolate, que funciona melhor na filmagem em preto e branco. Grande parte da dramaticidade da cena se deve à música de Bernard Herrmann: aos guinchos de violinos durante as facadas e aos ostinatos de violoncelos e contrabaixos enquanto o corpo cai e ainda tenta se agar­­rar à cortina de plástico, arran­­can­­do-a dos prendedores. O ruído da faca entrando na carne de Marion foi feito por um contra-regra apunhalando um melão. Toda a ma­­gia da cena foi construída na montagem das centenas de me­­tros de celulóide rodados durante a semana.
Hitchcock, com sua fabulosa cultura cinematográfica, inspirou-se na técnica de superposição de imagens dos mestres russos do cinema mudo. A boca de Janet Leigh que se abre num grito de terror lembra a cena lendária do tiroteio nas escadarias de Odessa em O Encouraçado Potemkin (1925); e ambas evocam um ícone da pintura, “O Grito”, do norueguês Edvard Munch (ironicamente massificado pelas máscaras de Pânico que a gente vê até nas gerais dos estádios de futebol brasileiros.) A genial transição do ralo para o olho de Marion, morta com o rosto no chão do chuveiro, lembra o close do olho cortado por uma navalha em Um Cão Andaluz (1929), de Buñuel. Um detalhe curioso: a mulher de Hitchcock, a roteirista Alma Reville, percebeu após a montagem dois trechos “errados”: o olho de Janet Leigh pisca e ela respira — falhas que foram devidamente cortadas.
O último mito a ser desfeito em torno da cena do chuveiro é de que ela teria sido “desenhada” pelo artista gráfico Saul Bass, autor dos títulos de Psicose e da maioria dos filmes de Hitchcock desta fase (inclusive do detalhe de olho na abertura de Vertigo/Um Corpo Que Cai.) Bass, além dos letreiros da abertura, chegou a desenhar storyboards para o filme, mas não foram usados por Hitchcock. O câmera principal do filme diz que não há uma cena sequer que ele não tenha rodado por indicação de Hitchcock. E um especialista na obra de Hitchcock diz: “Parece improvável, ou até impossível, que um perfeccionista com um ego como o de Hitchcock deixasse outra pessoa dirigir aquela cena”.




1º lugar na lista dos suspenses formulada pelo American Film Institute por ocasião do centenário do cinema é de Psicose. No mesmo levantamento, a produção de Hitchcock conquistou o 2º melhor vilão (Norman Bates) e a 4ª melhor trilha sonora.
 
 
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário