sábado, 19 de setembro de 2009

Diálogos de Woody Allen com a mitologia

Poderosa Afrodite será um dos filmes exibidos no Cinemas e Temas.


Amanda Antunes Machado




O
cineasta Woody Allen sempre estabelece diálogos com a literatura em suas obras, de maneira mais ou menos acentuada. Seus filmes sempre contam com alguma referência a uma obra ou escritor. Por exemplo, sua comédia Boris Gruchenko (onde homenageia os clássicos russos), é plena de citações não só da literatura russa, mas de várias grandes obras da literatura. Mas as referências literárias de Allen vão mais longe: longe até a antigüidade grega.

Inúmeros são os mitos gregos presentes em nossa cultura. Passados mais de dois mil anos, estes mitos sobreviveram até o nosso tempo graças às obras de poetas e artistas da Grécia antiga que foram preservadas até hoje. É freqüente o resgate dessas lendas na arte e na literatura contemporânea, sendo a mitologia matéria preferida de muitos artistas mesmo no século XX. E assim ocorre também na obra cinematográfica de Woody Allen.

A presença de citações da literatura e mitologia grega é muito freqüente na obra de Allen. A começar pelos nomes dos filmes: temos Mighty Aphrodite, em que a personagem de uma prostituta e atriz de filmes eróticos se chama Afrodite, conforme a deusa grega da beleza e do amor. Além da referência mitológica, há também um interessante diálogo com o estilo do teatro grego clássico: a tragédia. Em certos momentos, um coro trágico aparece intervindo ao enredo.2

Cassandra's Dream é outro filme de Allen com referência mitológica no título. E na trama é também o nome dado ao veleiro que, com muito custo, os dois irmãos protagonistas compram no começo da história. Neste filme a referência central é a personagem mitológica Cassandra, que aparece na Ilíada e tinha o dom da profecia. Por resistir à sedução de Apolo, foi amaldiçoada, para que ninguém mais viesse a acreditar em suas previsões. Podemos relacionar o fato da compra do veleiro, logo no início do filme, como uma anunciação de que algo trágico poderá acontecer (e que, de fato, acontece). No decorrer do enredo também podemos perceber a referência feita à tragédia Medeia, de Eurípedes, no momento em que a namorada de um dos irmãos encena uma peça de teatro.

Outros filmes ainda apresentam elementos claramente apropriados dos relatos mitológicos que chegaram até nós: na comédia Scoop, vemos o personagem Joe Strombel, um jornalista que, morto, segue no barco que o conduz a sua morada de além túmulo e em conversa com outro recém falecido recebe uma informação que pode ser um grande furo jornalístico. Esta é uma clara referência, feita de forma paródica, da descida ao Hades (infernos) conforme a mitologia grega: em dois dos grandes épicos da Antiguidade, Odisséia e Eneida, temos os respectivos heróis Odisseu e Eneias indo até o Hades, a morada dos mortos. Na Divina Comédia, Dante é conduzido na barca de Caronte até o Inferno. Woody Allen retoma esse mito e atualiza de forma cômica, colocando seus mortos num barco a motor, conversando animadamente, enquanto viajam ao seu destino eterno. Mas Allen não foi o primeiro a satirizar a descida aos infernos: no século II d.C. Luciano de Samosata satiriza essa descida aos infernos no seu Diálogos dos mortos, colocando figuras mitológicas e históricas em engraçadas situações de ridículo.

Já em Match point, claramente inspirado no romance Crime e castigo, de Dostoievski, o personagem Chris, tomado pelo desejo de conforto e pela ambição de status, após cometer a brutal decisão de assassinato, justifica seu ato com uma frase de Sófocles, o célebre autor de tragédias clássicas: “nunca ter nascido é a maior dádiva de todas”.

No filme Melinda and Melinda, mas uma vez se faz presente o teatro grego, a história é movida pela diferença de gêneros narrativos (ou as duas modalidades de teatro grego): a tragédia e a comédia. Em uma mesa de restaurante, um grupo de amigos discute a condição humana, e se a melhor maneira de dar conta artisticamente disso seria a forma trágica ou a forma cômica. O filme então se desenvolve com a encenação de duas histórias semelhantes, sobre uma mulher problemática chamada Melinda. As duas histórias paralelas têm mais ou menos os mesmos personagens, porém sob óticas diferentes: numa das histórias temos uma Melinda vivendo algo como um enredo de comédia romântica, em situações engraçadas, onde a experiência humana é tratada com ironia, sarcasmo. Na Poética, Aristóteles aponta como um dos traços distintivos da comédia em relação à tragédia o fato daquela tratar de “homens inferiores”; assim é nesta história: o homem apaixonado por Melinda é um ator frustrado, além de ser traído pela mulher. Na outra história há uma aposta nos elementos trágicos da existência humana: Melinda é amarga e insegura, e vive experiências que a levam a tornar-se ainda mais triste.

Ao utilizar tal material em suas obras, Allen procede numa atualização da literatura e dos mitos dos antigos gregos, fazendo-os renascer em outro contexto, absolutamente diverso do contexto em que tais mitos foram concebidos. Ainda assim, vemos que nossa semelhança com os antigos gregos é grande, já que tais mitos são significativos e falam profundamente de problemas de todos nós.

Tanto no drama quanto na comédia, o cineasta procura evidenciar personagens de caráter questionável, desencadeando dessa forma possíveis catástrofes, acrescenta tragédia e mitologia grega para exprimir sentimentos contemporâneos em seus enredos, sentimentos esses que são vividos ainda nos dias de hoje. Allen através da arte cinematográfica nos faz estabelecer importantes relações com nosso passado.

Como Junito de Souza Brandão afirma, “Com o recurso da imagem e da fantasia, os mitos abrem para a Consciência o acesso direto ao Inconsciente Coletivo. Até mesmo os mitos hediondos e cruéis são da maior utilidade, pois nos ensinam através da tragédia os grandes perigos do processo existencial”. É dessa forma que o mito grego, apesar de hoje não mais explicar a origem do mundo, continua presente em nosso imaginário.

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