Sérgio Rizzo - Revista Cult
Como definir a obra de Eduardo Coutinho? Algumas tentativas são recorrentes e apontam, com formulações ligeiramente distintas, para horizontes complementares. Seria um “cinema do encontro”, como foi apresentado no título da retrospectiva dedicada a ele em outubro de 2003 pelo Centro Cultural Banco do Brasil. Seus curadores, Cláudia Mesquita e Leandro Saraiva, utilizam outra expressão, cinema “olho no olho”, na apresentação do catálogo. “No centro de seu método, está a fala de alguém sobre a sua própria experiência, alguém escolhido porque não se espera que se prenda ao óbvio, aos clichês relativos à sua condição social”, observa o professor e ensaísta Ismail Xavier em um dos textos reunidos nesse mesmo volume.
Criador e diretor do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, que elegeu em 2000 Cabra Marcado para Morrer (1984) como o mais importante filme de não ficção realizado no Brasil, o crítico Amir Labaki prefere, em seu livro Introdução ao Documentário Brasileiro, a expressão “cinema de conversa” para identificar a “variante particular do instrumento da entrevista” usada pelo diretor. Já a professora e jornalista Consuelo Lins, autora de O Documentário de Eduardo Coutinho – Televisão, Cinema e Vídeo e colaboradora do cineasta em Babilônia 2000 (2001) e Edifício Master (2002), fala em “cinema da palavra filmada”, que “aposta nas possibilidades de narração dos seus próprios personagens”. Ou, como sublinha Claudio Valentinetti no livro-entrevista O Cinema segundo Eduardo Coutinho, obra realizada por um “extraordinário narrador de narrações”.
“Entender as razões do outro, sem lhe dar razão”
Encontro, conversa, olho no olho. Fala, palavra filmada, narração. Aparentadas, essas palavras-chave dão conta do que, objetivamente, tratam os filmes que fizeram do cineasta, hoje com 77 anos, referência obrigatória para o documentário na passagem do século 20 para o 21, pouco mais de cem anos depois das primeiras experiências de registro de cenas do cotidiano em imagens feitas na França e nos Estados Unidos – a aurora, portanto, do que hoje chamamos de produção documental. Nos filmes de Coutinho, é mais ou menos isso, em drástico resumo, o que se vê e se ouve. A experiência de assistir a eles, no entanto, vai muito além do que essas palavras-chave sugerem. A estratégia da conversa olho no olho, em encontro do cineasta e de sua equipe com seus personagens anônimos, propicia, com seu rigor metodológico, um cinema peculiar em que – atenção: quem define agora é o próprio Coutinho – o interesse está no que resulta “precário, incompleto, parcial, que não diz tudo porque não pode dizer tudo”.
“O que me interessa é aquilo que não sou eu, ou aquilo que não sei”, disse ele ao participar de um colóquio do II Congresso de Jornalismo Cultural, promovido em maio pela CULT. A frase é variação de outra, mais antiga e também reveladora do que o move: “Entender as razões do outro, sem lhe dar razão”. Para isso, ele fica sempre ao lado da câmera, a “uns 30 centímetros do entrevistado, sentindo o bafo dele”, e disposto a obter daquela “personagem concentrada” (tal como se revelará ao espectador, em depoimento editado, na versão final do filme) alguém “mais interessante do que a (própria) pessoa”. “É uma conversa em que o desejo da pessoa de falar e o meu de ouvir se cruzam”, resume. Cinema do “aqui e agora”, e não do “aqui e ontem” ou do “ali e amanhã”. Cinema do instante, do presente. E da busca pelo belo que se revela na “imperfeição” humana.
Documentário? Para Coutinho, trata-se de um “sistema”, e não gênero, que se distingue da ficção porque filma “pessoas que existiram, existem e existirão, se não morrerem durante as filmagens”. O diretor torna-se “responsável” por elas, equilibrando-se na “corda bamba” ética de decidir o que fazer com o que mostram e dizem. Tentativas de delimitação do território documental à parte, Coutinho – cujos longas mais recentes, Jogo de Cena (2007) e Moscou (2008), embaralham as cartas dos “sistemas” – gosta da palavra em inglês para cineasta (que considera “um termo pomposo”): “filmmaker”, ou “fazedor de filmes”. “A arte fala de si mesma, e cada vez mais penso que os filmes também falam de si mesmos”, afirma.
Fernanda Torres (esq.) e Marilia Pêra atuando em Jogo de Cena (2007)
Pois foi um ilustre “fazedor de filmes”, o inglês Charles Chaplin (1889-1977), quem contribuiu indiretamente para que o paulistano Eduardo de Oliveira Coutinho investisse na profissionalização nessa área. Estudante de direito no início dos anos 1950, foi revisor e copidesque da revista Visão. Fez o célebre Seminário de Cinema organizado pelo Museu de Arte de São Paulo em 1954 e, graças ao prêmio recebido em um programa de TV no qual respondia a perguntas sobre Chaplin, mudou-se para Paris, onde estudou no hoje lendário Institut des Hautes Études Cinématographiques (IDHEC), que deu origem em 1986 à Femis (École Nationale Supérieure des Métiers de l’Image et du Son), uma das mais prestigiadas escolas de cinema do mundo, mas que, segundo Coutinho, pouco o ajudou em sua formação.
A saga de Cabra Marcado para Morrer
De volta ao Brasil no início dos anos 1960, aproximou-se do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), inicialmente em São Paulo, como integrante do grupo teatral dirigido por Chico de Assis. Em 1962, transferiu-se para o Rio de Janeiro. Foi gerente de produção do longa Cinco Vezes Favela, que abandonou para assumir o projeto UNE Volante, registrando as passagens do grupo por diversas cidades brasileiras para um documentário que jamais seria concluído. Graças a esse trabalho, no entanto, teria um encontro que seria determinante em sua carreira: ao filmar um protesto pela morte do líder camponês João Pedro Teixeira na Paraíba, conheceu sua viúva, Elizabeth Teixeira.
Dois anos de percalços foram vividos por Coutinho antes que, em fevereiro de 1964, começasse a rodar, em Pernambuco e com verba da UNE, um longa semidocumental sobre a vida de João Pedro, com Elizabeth e outros camponeses no elenco: Cabra Marcado para Morrer. Interrompidas pelo golpe militar, as filmagens somaram pouco mais de uma hora e os negativos só não foram perdidos porque o pai do cineasta David Neves, que era general, os armazenou em casa. Perseguida, Elizabeth precisou trocar de nome e fugiu. Coutinho só a reencontrou depois da anistia, quando decidiu retomar o projeto. Agora, já se tratava de um documentário de investigação, de rumo desconhecido: a ideia central era saber o que havia ocorrido com os camponeses desde a interrupção das filmagens.
Um filme sobre um filme inacabado, ou sobre o que restou da equipe de um longa planejado para ser ficção e que se transformou, com o lançamento em 1984, em outro Cabra Marcado para Morrer. “Coutinho vai estimular a memória de seus interlocutores, no presente, oferecendo, de um lado, o acesso à visão das imagens do passado e, de outro, favorecendo, por meio de uma escuta atenta, a emergência de uma palavra, que surge através de uma série de diálogos intersubjetivos”, observa o professor e documentarista Henri Arraes Gervaiseau em ensaio também publicado no catálogo da retrospectiva do CCBB. “A maior parte dos depoimentos que Coutinho recolheu são narrativas de vida, e essas não devem ser consideradas como simples narrativas factuais, mas sobretudo como instrumentos de reconstrução da identidade dos sujeitos”. Estabeleciam-se, assim, as coordenadas que orientariam o dispositivo de seus longas seguintes, de Santo Forte a Moscou.
Cenas de Cabra Marcado para Morrer (1984) e Moscou (2008)
A sublimação do silêncio
Nos 20 anos que separam o início de Cabra… de sua conclusão, Coutinho permaneceu ativo, tanto no cinema quanto na televisão. Foi corroteirista de A Falecida (1965) e Garota de Ipanema (1967), ambos de Leon Hirszman, de Os Condenados (1973), de Zelito Viana, de Lição de Amor (1975), de Eduardo Escorel, e do maior sucesso de público na história do cinema brasileiro: Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), de Bruno Barreto. Dirigiu o episódio “O Pacto” (do longa O ABC do Amor, 1967), a comédia O Homem que Comprou o Mundo (1968) e o filme de cangaço Faustão (1971). No início dos anos 1970, voltou ao jornalismo, trabalhando no Jornal do Brasil. De 1975 a 1984, outra experiência-chave, na Rede Globo, como montador e diretor do Globo Repórter. Foi um período antológico na história do telejornalismo brasileiro – que, segundo ele, não tem hoje a menor chance de ser revivido porque, entre outros motivos, “na TV atual você pode fazer tudo, menos 2 segundos de silêncio”.
E momentos de silêncio, como sabem os que conhecem seus filmes “de conversa” e “da fala”, são muitas vezes os pontos altos de depoimentos, quando o personagem “trava” por algum motivo e o espectador consegue vislumbrar (ou especular) o que o mantém assim. São também oportunidades para que se procure “filmar o invisível”, como bem exemplifica Santo Forte, na sequência antológica em que Coutinho pergunta a uma personagem onde estão os espíritos aos quais ela se refere. “Estão aqui”, diz ela. No plano seguinte, por segundos que pareceriam intermináveis e proibitivos na atual TV brasileira, vemos apenas um quintal vazio (será mesmo?) e ouvimos um silêncio estrondoso.