sexta-feira, 16 de julho de 2010

O mundo da animação invade Rio e São Paulo

Edu Fernandes

Da Redação
Site UOL



Todo ano, os amantes dos mais variados estilos de animação aglomeram-se em filas para conferir as sessões do Anima Mundi. Em 2010, na 18ª edição do festival, não será diferente. Mais de 450 filmes de todos os cantos do mundo serão exibidos de 16 a 25 de julho no Rio de Janeiro e de 28 de julho a 1 de agosto em São Paulo.
Entre os países participantes, o Brasil é o que tem mais produções em cartaz no evento, com 108 títulos. As demais obras vêm de países diversos, como Polônia, Taiwan, Austrália, Argentina e muitos outros. A programação contempla as mais variadas técnicas de animação e as sessões são gratuitas ou têm preços populares.
Além dos filmes selecionados entre os 1.500 inscritos, o Anima Mundi exibe a Mostra África do Sul, com produções do país que sediou a Copa do Mundo. Os realizadores Daniel Greaves e Cordell Barker, ambos laureados pelo Festival de Cannes, são convidados do evento e terão retrospectivas de seus trabalhos.
As escolas formadoras de profissionais de animação também serão lembradas, com a Mostra Escolas de Animação. Os trabalhos feitos pelos alunos da californiana CalArts (fundada por Walt Disney), da francesa Gobelins e da argentina UBA participarão de uma retrospectiva. Representantes das três entidades farão parte do Anima Forum.
Outro atrativo do festival é a pré-estreia nacional de “Meu Malvado Favorito”, produção que estreou no circuito dos Estados Unidos superando as expectativas de bilheteria. O longa, totalmente animado em um estúdio francês, terá exibições nas salas 3D Artplex em cópia dublada.

AO REDOR DO MUNDO E NO FUNDO DO MAR
Daniel Greaves e Cordell Barker não são as únicas atrações internacionais do Anima Mundi 2010. Stephen Hillenburg, criador do personagem Bob Esponja, estará no Brasil para falar de sua trajetória e responderá perguntas dos fãs durante um Papo Animado.
Nas Master Classes, o público pagante terá acesso a aulas com profissionais renomados. Em uma delas, Jordi Grangel, co-diretor do estúdio Grangel, em Barcelona, falará de criação de objetos para animações em stop-motion e do seu trabalho em “A Noiva Cadáver”. Já Andy Malcom falará de sonoplastia em animações.
O 18º Anima Mundi ainda traz uma extensa programação de debates e oficinas.

sábado, 10 de julho de 2010

Godard e Truffaut são os personagens de documentário


  O documentário Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague tem como personagens os dois diretores franceses.


BRUNO SCUISSIATTO

O diretor francês Emmanuel Laurent é o responsável pelo documentário Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague, que  trata da amizade e ruptuta  entre dois dos maiores cineastas franceses de todos os tempos, no caso, Jean Luc Godard e François Truffaut. Abaixo a entrevista com diretor na revista Bravo, edição de julho.



BRAVO!: Como se iniciou o seu interesse pela Nouvelle Vague?

Emmanuel Laurent: Os filmes de Truffaut me tocaram desde muito cedo e me mostraram que eu poderia fazer filmes. Tenho uma forte ligação com Jean-Pierre Léaud. Ele é o meu irmão mais novo por assim dizer. Esse é o motivo que me levou a fazer filmes. Quando comecei foi como editor de filmes e Godard é um grande exemplo de como se editar filmes. Esta foi a sua maior contribuição ao cinema.

B!: Porque focar na relação entre esses dois cineastas em um documentário?

EL: Alguns anos atrás, conheci Antoine de Baecque que estava estudando a história da Nouvelle Vague e escrevendo uma biografia sobre Godard. Nós queríamos fazer um filme sobre o movimento, mas sabíamos que fazer um filme sobre a Nouvelle Vague é uma tarefa difícil que já foi feita antes. Algumas vezes muito bem. Pensando nisso, percebemos que ninguém tinha feito algo sobre a amizade deles. Então nós decidimos contar a história dessa amizade muito rara, forte e profunda e que se confunde com o que acontecia na França naquele momento. Mostrar como eles lidaram com a situação política do país e falaram com uma geração. Além das peculiaridades como o quanto eles se financiaram mutuamente e como Godard roubou várias coisas de Truffaut para fazer como se fosse seu. Eu acredito que era uma relação maravilhosa.

B!: Qual é o maior legado que a Nouvelle Vague deixou ao cinema mundial?

EL: Nós não pensamos filmes do mesmo jeito desde que eles vieram. Antes das críticas que faziam como jornalistas, o cinema era visto como um entretenimento popular, não era visto de maneira séria. Naquela época se dissesse que Hitchicock era um grande artista você seria visto como louco. Ele não era era reconhecido por mais ninguém a não ser por eles. O cinema num geral era mal visto e o cineasta menosprezado Quando se falava em cinema, se falava em escritores (literatura) e atores (teatro) não em como se faz um filme, a luz, a construção, a edição ou qualquer outra coisa. Foram eles que transformaram o significado de fazer cinema em algo relevante a ser estudado e fizeram com que se começasse a pensar em direito autoral, "um filme de tal pessoa".

B!: É Mais fácil fazer um filme autoral hoje em dia?

EL: Eu não acho que seja fácil. Acredito que é uma batalha que nunca está ganha. Você tem que continuar lutando porque luta contra um sistema. Os produtores de cinema não querem perder dinheiro. Na Nouvelle Vague era feito esse tipo de filme que ninguém sabe o que esperar. Foi uma luta bem difícil para eles e ainda é.  Sempre existem águias contra o sistema de produção norte-americano, mas nem sabemos no que estão trabalhando.

B!: Como os integrantes da Nouvelle Vague procediam?

EL: Eles faziam filmes de baixo custo financiados pelo lucro do anterior. A ideia é tentar fazer muito sucesso para poder fazer um filme maior que o outro até explodir (rs).  Nós temos um exemplo disso atualmente que é o cineasta francês Roger Vadim. Ele fez filmes mais complexos do que caros e todo mundo se esqueceu dele, ninguém mais assiste aos seus filmes. Esse é um risco. Hoje se faz muitos filmes independentes, pois eles não perdem dinheiro, mas poucos assistem.

B!: Mas agora com o youtube todos podem ter acesso a essas produções independentes, não?

EL: É verdade. Com uma câmera digital, que não custa muito, você pode fazer um filme sozinho no seu quarto. Mas também é mais difícil ter um empenho estético e encontrar um estilo cinematográfico. Tenho certeza que há grandes cineastas fazendo esse tipo de trabalho, porém não é um grupo fazendo um movimento para este tipo de trabalho. Você pode postar na internet, mas como as pessoas saberão que aquilo existe? Como formar um tipo de grupo, escola e dinâmica sobre isso? Na Nouvelle Vague eles criaram uma dinâmica. No final de sua carreira todos ouviam o que Truffaut tinha para dizer. Ele era tão poderoso e seus artigos eram tão fortes que todos falavam sobre ele. E, com certeza, o lançamento de um filme seu era o evento do planeta. Então, como você encontra o ponto? Só porque você faz, você vai atrair centenas de pessoas? Você tem que encontrar alguma coisa duradoura.

B!: Existem regras para se fazer um filme?

EL: A palavra-chave pra mim é sinceridade. Eu acredito que essa é uma palavra muito importante para explicar como Truffaut e Godard faziam seus filmes. Por isso os trabalhos de Truffaut eram tão tocantes, porque eles eram muito verdadeiros sobre a realidade de sua vida. Godard era por outro motivo. Ele falava sobre o hoje, procurava lugares e pessoas que representassem a atualidade. Esse era o grande talento dele que tinha um excelente cameraman vindo dos noticiários, tentando buscar o realismo a todo o momento.

B!: Os cineastas da Nouvelle Vague sempre tinham uma mensagem a transmitir através de seus filmes. Qual é a sua?

EL: Sobre este filme, eu acredito que é uma história importante a ser contada e recontada. A melhor coisa que fazemos com a Nouvelle Vague é compará-la com os pintores impressionistas. Os pintores impressionistas tinham teorias maravilhosas contra a academia e ganharam, mas a academia veio de novo e surgiram os novos impressionistas. A ideia é que todas as gerações precisam lutar e encontrar a estética do seu tempo. O tempo da Nouvelle Vague não existe mais por isso não deve ser copiada. Você tem que encontrar o sentido de hoje.

B!: Você tem projetos para um novo filme?

EL: Com certeza. Eu ainda não morri (rs). Escrevi um livro sobre uma modelo do impressionismo chamada Victorine Meurent. Ela era uma modelo de pintor Edouard Manet  vinda da classe operária. Ela se tornou uma pintora, mas suas telas se perderam e pouco se sabe sobre ela. Eu mesmo não sabia até que passei quatro anos coletando e pesquisando coisas e escrevi o livro Mademoiselle V.. Agora sei bastante e pretendo fazer uma ficção baseada em toda a sua vida. Será gravado em inglês e tem o título provisório de Diário de uma garota operária.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

O ÚLTIMO SUSPIRO

POR FÁBIO AUGUSTO STEYER



Bruno não é daqueles caras que metem bronca com tudo. É tranqüilo. Até demais. Mas aquela situação era completamente insustentável...
Tem dias em que tudo dá errado. E foi o que aconteceu naquela terça-feira, véspera de feriado.
Foi um dia de “anti-herói”, e Bruno se sentiu Macunaíma diante de tal acontecimento. Tá bom... Macunaíma, não. Talvez Dom Quixote... Cada um escolhe a personagem que melhor representar o drama encenado naquele que é o mais interessante palco de todos: a platéia.
Um detalhe que não podemos deixar de fora da história: nosso protagonista tem uma mania um tanto inusitada: é completamente viciado por suspiros!!! Bruno é capaz de qualquer coisa para conseguir um pacote deles. Chega a lamber os beiços, a salivar quando vê aqueles flocos nevados de açúcar, montanhas de gelo a provocar – coma-me! -, a transformar a razão em sentimento mais passional e ardoroso do que o de torcedor fanático em dia de clássico no futebol.
Bruno é assim. Um sujeito tranqüilo. Que devora suspiros como ninguém neste mundo. Sempre acompanhados de Fanta light. É verdade. Talvez a bebida seja o mais estranho desse vício. Sem Fanta light não tem suspiros. Não tem graça...
Pois foi assim que tudo começou.
Bruno foi ao supermercado, comprou um pacote de suspiros e um litrão de Fanta light e foi para o Cine Palladium, que naquela inspirada semana (real ou fictícia, isso ninguém sabe) estava exibindo uma retrospectiva do Fellini. O filme era “A Doce Vida”, com Marcelo Mastroianni e Anita Ekberg.
Sala vazia, véspera de feriado, dia ideal para um programa cinematográfico.
Mas aquela situação era completamente insustentável...
Luzes apagadas, filme em exibição e Bruno mastigava incansável os seus suspiros. O ranger dos dentes sobre os montes alvos e gorduchos só era interrompido pelos ávidos goles de Fanta light e pelos devaneios da bela moça na fila da frente, que suspirava toda vez que Mastroianni aparecia na tela, desviando a atenção de Bruno.
Ao arranjo gastronômico e amoroso que ritmava as ações de Bruno, enfastiado com os suspiros, e da menina que platonicamente devorava o olhar do galã italiano, veio se juntar um novo e perturbador elemento: na primeira fila, um casal de meia idade fazia amor, no chão, sob as luzes e sombras projetadas da tela em toda a sala de exibição. Roupas esvoaçantes e sussurros de glória e dor harmonizavam a coreografia daquela dança provocante e sinfônica, intensificando o estarrecimento dos espectadores das fileiras mais próximas.
Bruno é um cara tranqüilo. Até demais. Mas aquela situação era completamente insustentável...
Ele olhava para a moça em sua frente e ela parecia não perceber nada, hipnotizada pela cena de amor de Anita Ekberg e Mastroianni na Fontana di Trevi.
Mastigava seus suspiros, bebia sua Fanta light e estava completamente perturbado com aquele casal transando assim, descaradamente, na primeira fila do cinema.
E a moça não fazia absolutamente nada...
De repente, Bruno viu diante de si um suspiro gigante, que vinha em sua direção. Ameaçador, ele tinha olhos vermelhos e ovalados, e chegava cada vez mais perto. Bruno não via mais nada em seu redor, apenas o suspiro enorme, branco, sobre seu corpo, fazendo amor e sussurrando mensagens completamente inadequadas para um texto literário de respeito.
Prestes a atingir o ápice daquele momento, Bruno gritou:
- Cheeeegaaaa!!!!!
Por alguns segundos todo o cinema parou.
O casal da primeira fila interrompeu o ato e olhou para trás.
A bela moça da poltrona em frente olhou para Bruno.
Ele corou.
Ela desviou seu olhar para a Fontana di Trevi e suspirou profundamente.
Bruno encheu as narinas de ar e lentamente soltou pela boca.
Pediu desculpas para si mesmo e riu. Um riso amargo e com uma pontinha de ironia.
Enfiou a mão no pacote de guloseimas. Só havia sobrado um.
Então comeu o último suspiro, bebeu o resto da Fanta light e foi embora, pensando no ciclo de Hitchcock que começaria na semana seguinte.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Vidas Secas - cinema, Fabiano e Graciliano



BRUNO SCUISSIATTO


Uma das práticas do Cinemas e Temas é proporcionar aos participantes um contato irrestrito com vários segmentos da produção cinematográfica. Dentro disso surgiu o “Diálogos entre o cinema e a literatura”, que traz para o cerne do projeto a literatura, certamente o maior filão utilizado como argumento  para uma tradição  fílmica.
Ao relacionar a literatura com o cinema recaímos sobre o campo das adaptações, uma tradição corriqueira nas sétima arte. Como invenção tardia em relação ao teatro e a própria literatura, o cinema tem apenas pouco mais de um século de nascimento, talvez isto explique de alguma forma um reaproveitamento do discurso literário pelo cinema.
Atualmente a quantidade de roteiros adaptados é uma tendência dentro da produção cinematográfica, seja nos filmes produzidos com incentivos de editais de fomento à cultura no Brasil ou mesmo nos estúdios de Hollywood. No Brasil o mercado de adaptações é uma das marcas em nossa cinematografia, seja pela Cinema Novo ou marginal, e, ainda com os filmes produzidos após o cinema da reabertura.


Pequeno histórico do cinema e literatura pelo romance de 30

Por se tratar de semiologias distintas o cinema não tem a pretensão de repetir a prosa literária, pois respeitadas as fronteiras, a teoria da literatura pode ser utilizada dentro do discurso cinematográfico. Um dos traços mais fortes do Cinema Novo foi o desprezo pela retórica, tão comumente aplicada no cinema nacional centrado nas correntes européias. Assim, a produção extremamente voltada para as denúncias sociais do nordeste brasileiro na prosa literária de 30, tornou-se um dos argumentos mais fortes para os cineastas adaptarem para o formato fílmico muito da produção literária.
Assim, durante o período em que aflorou o movimento do Cinema Novo em 1963, com a trilogia do sertão, – Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos), Os fuzis (Ruy Guerra) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha), inúmeros filmes foram resultados das adaptações da literatura brasileira produzida no século XX. Uma das questões levantadas por este cinema foi levar para os projetos fílmicos questões nacionais, dialogando com as denuncias sociais, um dos traços marcantes dentro do Cinema Novo, porém também promovendo um diálogo com as produções literárias, musicais e teatrais daquele momento, principalmente em filmes notáveis como: Vidas Secas (Pereira dos Santos, 1963), Menino do Engenho (Walter Lima Jr, 1965), A Hora e a Vez de Augusto Matraga (Roberto Santos, 1965) e Macunaíma (Joaquim Pedro, 1969).
Nelson Pereira dos Santos o trabalho com a literatura sempre foi muito contundente dentro de sua filmografia, do mesmo Graciliano Ramos ele adaptou para o cinema o romance Memórias do Cárcere em 1984. Outros filmes do cineasta foram resultados de sua fiel aproximação com a literatura nacional: Boca de Ouro (1962) de Nelson Rodrigues, A Terceira Margem do Rio (1994) de João Guimarães Rosa e Casa Grande Senzala de Bernardo Guimarães em 2000.



Algumas passagens de Vidas Secas


A estrutura narrativa de Vidas Secas respeita o ritmo dos ingás secos do sertão alagoano. Rodado na Fazenda do Encantado, distante cerca de 30 quilômetros de Palmeiras dos Índios, local em que foi ambientado o enredo da obra. Com uma fotografia preta e branca o filme representa com fidelidade a saga da família de Fabiano. Mesmo que seja uma produção pautada no cinema, ela acaba dialogando de forma verossímil com o romance de Graciliano Ramos.
Um dos argumentos contundentes dentro das narrativas de Vidas Secas é que todo o espaço fílmico é pelo viés dos personagens centrais. O recurso de utilizar no processo da montagem das cenas “slow-ups” (câmera lenta), principalmente nas cenas de abertura dos filmes, talha o sentimento que perpassa os limites da projeção e explodem no peito do expectador. Principalmente na caminhada da família de Vidas Secas, na qual a ausência de som é apenas preenchida pelo atrito dos pés no solo seco.
A narratividade de Vidas Secas é conduzida pelo viés de Fabiano faz das cenas sempre um reflexo das andanças do sertanejo. Mesmo nos diálogos escassos, como a própria vegetação do sertão alagoano, o foco sempre é do pai de família.
A opção de deixar a narrativa ser conduzida pelo personagem de Fabiano, denota a ideia dos seus conflitos. Desde o começo da película, temos um sertanejo que alastra todo seu sentimento aos outros, inclusive aos pensamentos oniscientes da cadela Baleia. As condições explicitadas por Nelson Pereira dos Santos são sumárias, a exposição conflitante de um homem simples com a teorização da censura, principalmente na jogatina na qual o Soldado Amarelo o enquadra. Como fato denunciante no longa, fica evidente a opção de utilizar Fabiano como um precursor da estética das falas esparsas.
Muitos mais detalhes são perceptiveis no filme, principalmente se olharmos para o espaço fílmico como não uma chegada final, mas sim, uma grande saída, como o é a própria cena final de Vidas Secas.













quinta-feira, 1 de julho de 2010

O extraordinário narrador de narrações


Sérgio Rizzo - Revista Cult

Como definir a obra de Eduardo Coutinho? Algumas tentativas são recorrentes e apontam, com formulações ligeiramente distintas, para horizontes complementares. Seria um “cinema do encontro”, como foi apresentado no título da retrospectiva dedicada a ele em outubro de 2003 pelo Centro Cultural Banco do Brasil. Seus curadores, Cláudia Mesquita e Leandro Saraiva, utilizam outra expressão, cinema “olho no olho”, na apresentação do catálogo. “No centro de seu método, está a fala de alguém sobre a sua própria experiência, alguém escolhido porque não se espera que se prenda ao óbvio, aos clichês relativos à sua condição social”, observa o professor e ensaísta Ismail Xavier em um dos textos reunidos nesse mesmo volume.
Criador e diretor do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, que elegeu em 2000 Cabra Marcado para Morrer (1984) como o mais importante filme de não ficção realizado no Brasil, o crítico Amir Labaki prefere, em seu livro Introdução ao Documentário Brasileiro, a expressão “cinema de conversa” para identificar a “variante particular do instrumento da entrevista” usada pelo diretor. Já a professora e jornalista Consuelo Lins, autora de O Documentário de Eduardo Coutinho – Televisão, Cinema e Vídeo e colaboradora do cineasta em Babilônia 2000 (2001) e Edifício Master (2002), fala em “cinema da palavra filmada”, que “aposta nas possibilidades de narração dos seus próprios personagens”. Ou, como sublinha Claudio Valentinetti no livro-entrevista O Cinema segundo Eduardo Coutinho, obra realizada por um “extraordinário narrador de narrações”.
“Entender as razões do outro, sem lhe dar razão”
Encontro, conversa, olho no olho. Fala, palavra filmada, narração. Aparentadas, essas palavras-chave dão conta do que, objetivamente, tratam os filmes que fizeram do cineasta, hoje com 77 anos, referência obrigatória para o documentário na passagem do século 20 para o 21, pouco mais de cem anos depois das primeiras experiências de registro de cenas do cotidiano em imagens feitas na França e nos Estados Unidos – a aurora, portanto, do que hoje chamamos de produção documental. Nos filmes de Coutinho, é mais ou menos isso, em drástico resumo, o que se vê e se ouve. A experiência de assistir a eles, no entanto, vai muito além do que essas palavras-chave sugerem. A estratégia da conversa olho no olho, em encontro do cineasta e de sua equipe com seus personagens anônimos, propicia, com seu rigor metodológico, um cinema peculiar em que – atenção: quem define agora é o próprio Coutinho – o interesse está no que resulta “precário, incompleto, parcial, que não diz tudo porque não pode dizer tudo”.
“O que me interessa é aquilo que não sou eu, ou aquilo que não sei”, disse ele ao participar de um colóquio do II Congresso de Jornalismo Cultural, promovido em maio pela CULT. A frase é variação de outra, mais antiga e também reveladora do que o move: “Entender as razões do outro, sem lhe dar razão”. Para isso, ele fica sempre ao lado da câmera, a “uns 30 centímetros do entrevistado, sentindo o bafo dele”, e disposto a obter daquela “personagem concentrada” (tal como se revelará ao espectador, em depoimento editado, na versão final do filme) alguém “mais interessante do que a (própria) pessoa”. “É uma conversa em que o desejo da pessoa de falar e o meu de ouvir se cruzam”, resume. Cinema do “aqui e agora”, e não do “aqui e ontem” ou do “ali e amanhã”. Cinema do instante, do presente. E da busca pelo belo que se revela na “imperfeição” humana.
Documentário? Para Coutinho, trata-se de um “sistema”, e não gênero, que se distingue da ficção porque filma “pessoas que existiram, existem e existirão, se não morrerem durante as filmagens”. O diretor torna-se “responsável” por elas, equilibrando-se na “corda bamba” ética de decidir o que fazer com o que mostram e dizem. Tentativas de delimitação do território documental à parte, Coutinho – cujos longas mais recentes, Jogo de Cena (2007) e Moscou (2008), embaralham as cartas dos “sistemas” – gosta da palavra em inglês para cineasta (que considera “um termo pomposo”): “filmmaker”, ou “fazedor de filmes”. “A arte fala de si mesma, e cada vez mais penso que os filmes também falam de si mesmos”, afirma.
Fernanda Torres (esq.) e Marilia Pêra atuando em Jogo de Cena (2007)
Pois foi um ilustre “fazedor de filmes”, o inglês Charles Chaplin (1889-1977), quem contribuiu indiretamente para que o paulistano Eduardo de Oliveira Coutinho investisse na profissionalização nessa área. Estudante de direito no início dos anos 1950, foi revisor e copidesque da revista Visão. Fez o célebre Seminário de Cinema organizado pelo Museu de Arte de São Paulo em 1954 e, graças ao prêmio recebido em um programa de TV no qual respondia a perguntas sobre Chaplin, mudou-se para Paris, onde estudou no hoje lendário Institut des Hautes Études Cinématographiques (IDHEC), que deu origem em 1986 à Femis (École Nationale Supérieure des Métiers de l’Image et du Son), uma das mais prestigiadas escolas de cinema do mundo, mas que, segundo Coutinho, pouco o ajudou em sua formação.
A saga de Cabra Marcado para Morrer
De volta ao Brasil no início dos anos 1960, aproximou-se do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), inicialmente em São Paulo, como integrante do grupo teatral dirigido por Chico de Assis. Em 1962, transferiu-se para o Rio de Janeiro. Foi gerente de produção do longa Cinco Vezes Favela, que abandonou para assumir o projeto UNE Volante, registrando as passagens do grupo por diversas cidades brasileiras para um documentário que jamais seria concluído. Graças a esse trabalho, no entanto, teria um encontro que seria determinante em sua carreira: ao filmar um protesto pela morte do líder camponês João Pedro Teixeira na Paraíba, conheceu sua viúva, Elizabeth Teixeira.
Dois anos de percalços foram vividos por Coutinho antes que, em fevereiro de 1964, começasse a rodar, em Pernambuco e com verba da UNE, um longa semidocumental sobre a vida de João Pedro, com Elizabeth e outros camponeses no elenco: Cabra Marcado para Morrer. Interrompidas pelo golpe militar, as filmagens somaram pouco mais de uma hora e os negativos só não foram perdidos porque o pai do cineasta David Neves, que era general, os armazenou em casa. Perseguida, Elizabeth precisou trocar de nome e fugiu. Coutinho só a reencontrou depois da anistia, quando decidiu retomar o projeto. Agora, já se tratava de um documentário de investigação, de rumo desconhecido: a ideia central era saber o que havia ocorrido com os camponeses desde a interrupção das filmagens.
Um filme sobre um filme inacabado, ou sobre o que restou da equipe de um longa planejado para ser ficção e que se transformou, com o lançamento em 1984, em outro Cabra Marcado para Morrer. “Coutinho vai estimular a memória de seus interlocutores, no presente, oferecendo, de um lado, o acesso à visão das imagens do passado e, de outro, favorecendo, por meio de uma escuta atenta, a emergência de uma palavra, que surge através de uma série de diálogos intersubjetivos”, observa o professor e documentarista Henri Arraes Gervaiseau em ensaio também publicado no catálogo da retrospectiva do CCBB. “A maior parte dos depoimentos que Coutinho recolheu são narrativas de vida, e essas não devem ser consideradas como simples narrativas factuais, mas sobretudo como instrumentos de reconstrução da identidade dos sujeitos”. Estabeleciam-se, assim, as coordenadas que orientariam o dispositivo de seus longas seguintes, de Santo Forte a Moscou.
Cenas de Cabra Marcado para Morrer (1984) e Moscou (2008)

A sublimação do silêncio
Nos 20 anos que separam o início de Cabra… de sua conclusão, Coutinho permaneceu ativo, tanto no cinema quanto na televisão. Foi corroteirista de A Falecida (1965) e Garota de Ipanema (1967), ambos de Leon Hirszman, de Os Condenados (1973), de Zelito Viana, de Lição de Amor (1975), de Eduardo Escorel, e do maior sucesso de público na história do cinema brasileiro: Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), de Bruno Barreto. Dirigiu o episódio “O Pacto” (do longa O ABC do Amor, 1967), a comédia O Homem que Comprou o Mundo (1968) e o filme de cangaço Faustão (1971). No início dos anos 1970, voltou ao jornalismo, trabalhando no Jornal do Brasil. De 1975 a 1984, outra experiência-chave, na Rede Globo, como montador e diretor do Globo Repórter. Foi um período antológico na história do telejornalismo brasileiro – que, segundo ele, não tem hoje a menor chance de ser revivido porque, entre outros motivos, “na TV atual você pode fazer tudo, menos 2 segundos de silêncio”.
E momentos de silêncio, como sabem os que conhecem seus filmes “de conversa” e “da fala”, são muitas vezes os pontos altos de depoimentos, quando o personagem “trava” por algum motivo e o espectador consegue vislumbrar (ou especular) o que o mantém assim. São também oportunidades para que se procure “filmar o invisível”, como bem exemplifica Santo Forte, na sequência antológica em que Coutinho pergunta a uma personagem onde estão os espíritos aos quais ela se refere. “Estão aqui”, diz ela. No plano seguinte, por segundos que pareceriam intermináveis e proibitivos na atual TV brasileira, vemos apenas um quintal vazio (será mesmo?) e ouvimos um silêncio estrondoso.