POR RICARDO NARDES CORREA
No início de 2010 fui convidado pelo professor Fábio Steyer a participar do projeto Diálogos entre literatura e cinema, a ser desenvolvido pelo setor de Letras da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Havíamos travado conhecimento em novembro de 2009, por ocasião da defesa do meu Trabalho de Conclusão de Curso, que versava sobre dois filmes baseados na obra de William Shakespeare: Macbeth, de Roman Polanski, de 1971, e Trono Manchado de Sangue, de Akira Kurosawa, de 1957. Orientado pelo professor Antonio João Teixeira (Letras - UEPG), que dispensa maiores apresentações e comentários no que se refere à literatura inglesa e norte-americana, assim como ao cinema, estudei e analisei o espaço cênico de ambas as obras cinematográficas.
Sabendo desse interesse pela sétima arte e por Akira Kurosawa, Fábio sugeriu, então, que eu apresentasse RAN, filme de 1985 e considerado pelo próprio Kurosawa sua grande contribuição para o cinema. Inspirado em Rei Lear, de Shakespeare, Ran consegue captar toda a magnitude filosófica da peça, transpondo os limites do cinema. No filme estão impressos claramente elementos da cultura japonesa, notadamente do décimo sexto século (período do país em guerra). Segundo Teixeira, em entrevista concedida a Robert Hapgood, Kurosawa teria pensado, a princípio, em escrever um script sobre Motonari Mori, um general do décimo segundo século japonês, que tinha três bons filhos. Em um insight, o cineasta refletiu: o que teria acontecido se esses filhos fossem maus (dois deles)? E isso o fez lembrar da história do Rei Lear. Logo no início do filme, já se observa a marca do diretor na parábola do feixe de flechas que separadas são facilmente quebradas, mas que juntas se tornam fortes. A parábola é contestada por Saburo, o filho mais novo. Tal como o Rei Lear, o Grande Lord Hidetora já estava idoso e decidiu dividir seu reino entre seus três filhos, cabendo ao filho mais velho, Taro, o controle do Clã. Os outros dois castelos ficam para os outros filhos. Saburo contesta a decisão do pai, pensando no bem dele, e é expulso. Nesse aspecto da trama, o filme se assemelha muito à peça de Shakespeare, com a diferença que no caso dela, são três filhas: Goneril, Regana e Cordélia.
Se o Rei Lear representa a figura do patriarca centralizador, a figura do homem que prove e toma todas as decisões, com o Lord Hidetora a história teria sido igual se não fosse pelo seu passado de atrocidades e violência, em nome da conquista de territórios. Essas ações de Hidetora desencadeiam as ações de outros personagens no enredo do filme, como as de Lady Kaede, por exemplo, que teve sua família assassinada pelo Shogun, passando a agir motivada pela vingança e assim também justificando a reclusão de Tsurumaru, que teve seus olhos queimados pelo Grande Lord, depois do castelo de sua família ter sido incendiado. Esse ambiente onde se desenrolam essas guerras entre clãs foi criado com base na era do país em guerra, onde Kurosawa se inspira para criar sua trama. Assim também era a atmosfera da Grã-Bretanha do século XVI, em que Shakespeare escreve Rei Lear, considerando as guerras entre monarquistas e puritanos e a guerra dos Roses.
No que se refere aos momentos em que são travadas as batalhas, Kurosawa mostra ao espectador o aspecto trágico da guerra, enfatizado com o uso do som não-diegético, por meio de música orquestral. Numa longa seqüência, é mostrada uma carnificina onde os tons de vermelho sangue se destacam, muitas vezes sobre um quase preto e branco em segundo plano. Contraditoriamente, estamos diante de um momento de rara beleza artística mostrando a desgraça que o homem submete a si mesmo.
Em Ran, também somos convidados a imaginar, uma vez que o diretor opta pelo primeiro plano simples e recusa o recurso do close-up. Dessa forma, não conhecemos o rosto triste de Sue - essa é uma imagem criada por Hidetora. Entretanto, conseguimos perceber que Lady Kaede faz movimentos mínimos com seu rosto pintado como máscara e que Hidetora exagera suas expressões, quando começa a enlouquecer, para demonstrar medo, terror, indignação, tristeza e loucura.
A expressão dos atores principais: Kaede, Hidetora, Saburo, Giro e Tsurumaru, vem do teatro Nô e é justamente para dar essa dimensão ao espectador (como se sentisse em um teatro) que se opta pelo primeiro plano simples em muitas cenas. Nos planos em campo aberto, em que os exércitos cavalgam, denotam-se belíssimas tomadas em locações esplêndidas, que muito contribuem para dar um background naturalista em tais seqüências. A cena em que Saburo atravessa o rio com seu exército buscando salvar seu pai nos remete aos filmes de western, estilo em que estão, curiosamente, classificados muitos filmes de Akira Kurosawa nos Estados Unidos.
Ainda no que se refere à atuação dos personagens, um aspecto que chama nossa atenção é a forma como Hidetora expressa sua loucura e os sentimentos dela derivados. Isso ocorre, por exemplo, na cena em que seu castelo é tomado pelo exército de Giro, e ele se vê em meio ao fogo, tiros e flechas e se sente acuado, esbugalhando os olhos e indo de um lado paro o outro e depois quando sai do castelo, caminhando em linha reta, alheio ao mundo e com o olhar fixo para o nada. Também as seqüências ao lado do bobo, em que às vezes não reage às provocações daquele ou em outras ocasiões corre, fugindo de seus fantasmas ou perseguindo-os. Nesse sentido, a cena em que Hidetora pula de um monte não muito alto nos lembra muito a passagem em que Glocester quer pular de um precipício criado por Edgar, seu filho, em Rei Lear. Também a figura do bobo, que age sempre no sentido de provocar o Grande Lorde e os outros personagens, e, mais ainda, o próprio espectador com suas anedotas e cantigas que guardam uma sabedoria milenar, que sempre versam sobre questões importantes da vida humana, testando nossa racionalidade e fazendo com que nos perguntemos em alguns momentos quem é o bobo e quem é o rei. Não é a toa que Harold Bloom afirma que o bobo é um dos quatro personagens principais na peça de Shakespeare, assim como Lear, Edmundo e Edgar.
Uma das grandes questões abordadas por Shakespeare em sua obra, e tão bem explorada por Kurosawa, é a da senilidade. Em algumas oportunidades somos obrigados a entrar na mente de Hidetora, que vive conflitos do tipo: realidade e sonho, céu e inferno, razão e loucura. A obscuridade da casa de Tsurumaru é o clima perfeito para que seja dada vazão a esse estado psíquico. Hidetora não reconhece mais a si mesmo e nem aos que o cercam ao mesmo tempo em que lampejos de lucidez aumentam as esperanças do bobo, como o fato de, por alguns segundos lembrar do que fez a Tsurumaru, que com sua única amiga flauta, canta sua agonia e mágoa.
Sobre essa figura andrógena, no começo ficamos em dúvida sobre sua sexualidade. Tsurumaru parece representar a humanidade com sua solidão, pois estamos sempre a procura de algo que nos complete. A ultima cena, à beira do abismo, é emblemática, com a figura do Buda caindo e revelando que os deuses não podem nos salvar de nós mesmos.
Filmes como Ran estão acima de qualquer honraria, protocolo ou premiação, mas mesmo assim é bom lembrar que venceu o Oscar de melhor figurino, em 1985, o Oscar honorário, em 1989, e o prêmio Kyoto, em 1994. Esse ano, 2010, Akira Kurosawa completaria 100 anos no dia 23 de março, uma mente inquieta que sobreviveu a vinte e cinco tentativas de suicídio nos anos 1970 e acabou morrendo aos 88 anos, em 1998, talvez porque houvesse muito ainda a ser feito: Ran, sobretudo.
RICARDO NARDES CORREA
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