sábado, 8 de maio de 2010

Literatura e cinema: algumas reflexões sobre a produção voltada para o público infantil

POR FÁBIO AUGUSTO STEYER



A atual produção cinematográfica voltada para o público infantil é bastante diversificada. Há desde roteiros originais até adaptações das mais variadas obras teatrais e literárias, entre as quais têm se destacado nos últimos anos as versões fílmicas de livros também direcionados ao público juvenil, como Harry Potter, Crônicas de Nárnia, Ponte Para Terabítia, etc. Há uma predominância de filmes de fantasia, que nos remetem ao universo dos contos de fadas e mesmo da mitologia. Temos obras que pura e simplesmente são inspiradas em histórias infantis e juvenis, sendo muitas vezes atualizações do enredo para os dias de hoje; outras que procuram reproduzir de forma mais (ou menos) fiel a história original; e aquelas que, de certa maneira, “desorganizam”, no bom sentido, o texto tal como ele havia sido escrito, e que muitas vezes misturam, inclusive, personagens de várias histórias.
É neste último caso que podemos enquadrar os dois filmes que pretendemos analisar. “Deu a Louca na Chapeuzinho” (EUA, 2005), de Cory Edwards, e “Xuxa Abracadabra” (Brasil, 2003), de Moacyr Góes, são obras que têm como tema principal os contos de fadas, misturando seus enredos e personagens, incluindo atualizações nas histórias, desestruturando a ordem natural das ações e proporcionando uma visão polifônica e aberta de clássicos como Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos, João e Maria, etc.
Sabemos que hoje em dia é extremamente difícil trabalhar com os alunos em sala de aula os clássicos da literatura infantil e juvenil. A concorrência com o computador e os meios audiovisuais parece ser o problema mais óbvio, mas não é o único. O caráter moralizante das versões mais tradicionais de muitos contos de fadas proporciona apenas uma visão bastante fechada das obras. O preceito moral é dado e pronto. E o trabalho com outras versões nem sempre é fácil, até pela conotação erótica que muitas delas compreendem. Além disso, o livro didático de Língua Portuguesa e Literatura, por si só, fecha mais ainda a interpretação dos contos, na medida em que direciona a compreensão do aluno para determinados aspectos em detrimento de outros. Isso ocorre tanto a partir da utilização de trechos isolados das obras, das atividades propostas aos alunos, quanto das ilustrações das histórias, que muitas vezes induzem os estudantes a criarem uma determinada imagem das personagens e cenas. É a visão didática que acaba se sobressaindo sobre a literária. E assim, não formamos leitores de literatura, pois todo o seu aspecto lúdico e ficcional se perde. Como diria Eni Orlandi (1987), o discurso “autoritário” prevalece sobre o discurso “lúdico”. Ou seja: a polissemia, a liberdade de interpretação, a visão plural e aberta da obra literária são substituídas por uma verdade absoluta que me diz o que é certo e o que é errado, ou que direciona minha compreensão do texto.
Parece-nos que os filmes em questão, ao “desorganizarem” (no bom sentido, como já dissemos) essa visão “autoritária” das versões tradicionais dos contos de fadas, podem contribuir de maneira significativa para que se resgate, no trabalho com os alunos, o aspecto lúdico e ficcional tão próprio da literatura. Isso permite ainda que sejam feitas relações, as mais diversas possíveis, com a realidade do mundo contemporâneo e com outros códigos e linguagens midiáticos e artísticos, desestruturando uma visão fechada e parafrásica e construindo múltiplas visões acerca das obras, aproximando-se da idéia de polissemia.
Vejamos como isso acontece nos filmes em questão. Em “Xuxa Abracadabra”, temos a história de duas crianças que literalmente “entram” num livro que é, na verdade, o mundo dos contos de fadas. Lá elas contracenam com Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve, Gato de Botas, João e Maria, Pinóquio, etc., e devem enfrentar (junto com a protagonista Xuxa Meneghel, é claro), um vilão misterioso que está desestruturando a vida dos moradores da floresta encantada, lugar onde vivem as personagens dos contos infantis. Um primeiro aspecto a destacar é a constante interação entre mundo real e mundo da fantasia. Assim, além das crianças entrarem no mundo dos contos de fadas, as personagens das histórias infantis vêm para o mundo real. É o caso de Pinóquio e do Lobo Mau. Este último é, quando está na vida real, um lobo de verdade, que assusta as crianças. E na floresta encantada não tem nada de mau, sendo uma versão cômica da tradicional personagem.
Outra forma de quebrar as fronteiras entre real e fantástico é o modo como no filme aparece a figura do narrador. Ele freqüentemente interage com as personagens, conversando com elas e mesmo dando opiniões sobre o que está acontecendo. A desorganização da estrutura normal das ações e personagens das histórias aparece de forma clara nas gozações que são feitas durante o filme. Assim, quando a rainha da Branca de Neve pergunta ao espelho mágico sobre o caçador que deve matar a jovem na floresta, ele responde: “O caçador? O caçador é aquela bolha que a senhora já sabe, né?”. Ou então quando a mesma rainha (interpretada por Cláudia Raia), disfarçada de velhinha, vai dar a maçã envenenada à personagem de Xuxa Meneghel (e não à Branca de Neve, como na versão tradicional), esta diz à bruxa que não vai cair naquela cilada, e que sabe que a velhinha é uma bruxa, que a maçã está envenenada, obrigando a rainha a usar outra estratégia para o envenenamento.
As referências a questões da realidade contemporânea também contribuem para essa desestruturação da ordem natural das coisas. A vovó de Chapeuzinho Vermelho, vivida por Eva Todor, é totalmente “zen”, e nas poucas vezes em que aparece no filme está meditando. Maria (de João e Maria), quando capturada pela rainha da Branca de Neve (e aí temos uma interpenetração de histórias), diz que vai recorrer ao sindicato de personagens dos contos de fadas. E o príncipe, questionado por Branca de Neve sobre a ausência de seu cavalo branco, diz que entrou num consórcio e ainda não foi sorteado.
Em “Deu a Louca na Chapeuzinho”, as estratégias são bastante parecidas. O enredo é sobre um misterioso ladrão de doces que está acabando com todas as confeitarias da floresta. Os suspeitos: Chapeuzinho Vermelho, sua avó (a doceira mais famosa do lugar), o Lobo e um lenhador. O interessante é que cada um deles conta para a polícia uma versão diferente da história. E aí já começa a polissemia. E essas versões diferentes vão se entrecruzando, no decorrer da trama, de modo a solucionar o mistério.
Quanto às personagens, fica clara a desorganização das versões tradicionais, o que inclui alguns acréscimos e sujeitos de outros contos infantis. Os Três Porquinhos são policiais e comem a comida da cena do crime.


O chefe das investigações é um sapo (quase igual ao Caco, da série televisiva Os Muppets), que parece ter saído de um filme policial “noir”. O Lobo é um jornalista investigativo, que está na floresta como repórter a mando de seu jornal. A vovó de Chapeuzinho Vermelho é praticante de esportes radicais. Chapeuzinho luta artes marciais. Há ainda um coelhinho (o vilão da trama) e um bode enfeitiçado por uma bruxa, que só pode se comunicar cantando. Ah, e o lenhador é na verdade um vendedor de doces que sonha em trabalhar no mundo da publicidade vendendo um creme para calos (!).
Alguns diálogos do filme remetem à contemporaneidade. Isso acontece, por exemplo, quando Chapeuzinho, ao ver o Lobo, diz: “Você de novo?!?! O que eu preciso fazer, conseguir um mandado de segurança?” Em outros momentos, ironizam algumas passagens da história. O sapo policial pergunta a Chapeuzinho: “Então o lobo estava vestido como a sua avó?” Ela responde que sim. E o sapo pergunta de novo: “E você caiu nessa?” Ela responde: “Claro que não!”.
Destaque ainda para uma bela canção do filme, num momento da trama em que Chapeuzinho está confusa, triste, sem saber o que fazer. A música diz que naquele momento “vermelho é azul”, associando a cor azul à incerteza e à solidão da personagem. Tudo acompanhado por uma bela fotografia totalmente em tons azuis, apenas nesta parte do filme. Destaque também para a próxima reportagem especial do Lobo, que anuncia, no final, que vai se dedicar a investigar três porquinhos que abriram uma construtora cujas casas “não agüentam um sopro”.
Parece-nos, portanto, que esse tipo de “desorganização” dos contos de fadas nos filmes em questão, se trabalhado em conjunto com as versões tradicionais (e outras, quando isso for possível) e mesmo com a visão fragmentada, direcionada e fechada do livro didático, pode proporcionar interessantes formas de trabalho dos textos com os alunos. A partir das diferentes versões, eles poderiam formar também as suas, relacionando as histórias com a sua realidade e com seu próprio mundo infantil e juvenil. Isso estimularia uma visão polissêmica das histórias, preocupada com a recepção dos contos de fadas (e aí se trata de pensar mesmo uma perspectiva voltada para a Estética da Recepção) e com uma efetiva formação de leitores de literatura.
Como vimos, as relações entre cinema e literatura não podem ser vistas a partir do tradicional e ultrapassado ponto de vista que atestava a superioridade de uma sobre a outra. Era aquela velha história: o livro sempre é melhor do que o filme. Bobagem, ao meu ver. Cinema e literatura possuem linguagens totalmente diferentes, que devem ser respeitadas e analisadas em suas especificidades. E, no caso de “Deu a Louca na Chapeuzinho” e “Xuxa Abracadabra”, parece que os filmes podem dar uma efetiva contribuição para que se evolua a um discurso menos “autoritário” e mais próximo do “lúdico”. Basta saber aproveitar a complementaridade destas duas linguagens tão importantes para o mundo contemporâneo.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas: Pontes, 1987.

* Texto originalmente apresentado no I Congresso Internacional de Leitura e Literatura Infantil e Juvenil, realizado na PUCRS, em Porto Alegre, em 2008. Publicado na revista Letras de Hoje, do curso de Letras da PUCRS, v. 43, edição de abril/junho de 2008.

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