sexta-feira, 21 de maio de 2010

Um cinema documental plural no Brasil: violência e fome [1]


[1] Trabalho apresentado na I Semana de Enfrentamento à Violência contra crianças e adolescentes do curso de Serviço Social da Universidade Estadual de Ponta Grossa. 

Bruno Scuissiatto - graduando Português/Espanhol UEPG.



Resumo:


O presente resumo ensaístico pretende destacar filmes da cinematografia nacional que estão em constante movimento com a realidade brasileira, principalmente no que concerne os problemas em torno da violência. Para esse trabalho será utilizado a leitura prévia, embasando os direitos das crianças e adolescentes agredidos pelas mazelas sociais em dois documentários de amplo destaque dentro de nossa tradição fílmica. Ônibus 174 (2002) e Garapa (2008) do diretor José Padilha (Tropa de Elite) trabalham com o preceito do cinema documental. As produções mesmo que tenham sido realizadas em momentos diferentes, concentram problemas nacionais, rompendo as fronteiras dos relatos da cidade do Rio de Janeiro e do estado do Ceará visualizados nos documentários. Esses temas supracitados surgiram nos inúmeros encontros do grupo de pesquisa e extensão “Cinemas e Temas”, atrelado ao Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Estadual de Ponta Grossa e coordenado pelo professor Doutor Fábio Augusto Steyer. Ao longo de pouco mais de um ano de atividades o projeto atendeu uma plateia de mais de 400 espectadores presentes nas sessões de cinema, além de participar com seu grupo de pesquisa de diversos congressos, colóquios e seminários das áreas de letras. Destacando-se como o único projeto da área de letras a participar da última edição do SEURS – Seminário de Extensão da Universidades da Região Sul, realizado em Santa Maria no Rio Grande do Sul com uma oficina intitulada “Cinemas e Temas”.


Introdução

O cinema enquanto produto cultural é normalmente vinculado ao grande apelo comercial e cultural que consegue atender uma grande proporção de pessoas, seja pelo viés dos espectadores ou mesmo pelas discussões em torno do material fílmico concebido. A cinematografia brasileira, principalmente nos últimos vinte anos tem voltado os trabalhos para ficcionalizar o entorno de uma realidade brasileira factual. Há uma forte predominância de filmes históricos1, principalmente centrados nas ditaduras, permitindo uma reconstrução com um olhar moderno do passado, como nos filmes Zuzu Angel2 e O ano em que meus pais saíram de férias3. Na outra ponta da ficção cinematográfica brasileira temos o alcunhado “favela movie4”, que lidera boa parte das bilheterias da história do cinema nacional. Cidade de Deus5 e Cidade dos Homens6 são exemplos de filmes calcados na realidade das comunidades e entornos das favelas cariocas. Porém um dos campos que possui uma montagem diferente da simples acepção entre entretenimento e ficcionalidade é o documentário. Na obra “Mas afinal ... o que é mesmo documentário?”o autor, define:

Em poucas palavras,documentário é uma narrativa com imagens-câmera que estabelece asserções sobre o mundo, na medida em que haja um espectador que receba essa narrativa como asserção sobre o mundo. A natureza das imagens-câmera e, principalmente, a dimensão da tomada através da qual as imagens são constituídas determinam a singularidade da narrativa documentária em meio a outros enunciados assertivos, escritos ou falados.(RAMOS, 2008, p.22)

Entrelaçar a realidade documental é um dos caminhos da produção cinematográfica desde o surgimento do cinema no inicio do século passado na França, quando os Irmãos Lumiere7 retratavam nas películas imagens dos operários nas fábricas ou mesmo o vai e vem dos passantes nas ruas.


Objetivos

Dentro do Cinemas e Temas8, projeto extensionista agregado ao DELET – Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Estadual de Ponta Grossa, que é coordenado pelo professor Doutor Fábio Augusto Steyer, existe os possíveis diálogos das narrativas cinematográficas com temas emoldurados pelas montagens fílmicas. Para o presente trabalho serão explorados dois documentários dirigidos por José Padilha9 – Ônibus 17410 (2002) e Garapa (2008) no campo que concerne à relação com questões inerentes à violência contra crianças e adolescentes.
O principal apontamento que vale ressaltar no caso dos dois documentários são as fronteiras do fazer documental invadir as cenas dos acontecimentos sem o uso de um dos artifícios fundamentais para as filmagens: um roteiro inicial. No caso de Ônibus 174 a utilização das imagens do seqüestro aconteceu casualmente, a partir da câmera de Padilha ligada da janela do seu escritório no Jardim Botânico, zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Já em Garapa a equipe de filmagem se dirigiu até o Ceará sem um roteiro prévio, o único contato inicial foi com os dados de algumas organizações não governamentais. Como o próprio diretor relata no site do documentário: “Não viajei meses antes e fiquei escolhendo os personagens do filme, fomos para lá e logo começamos a filmar as famílias que encontramos”.
O seqüestro da linha 174, rota Gávea - Central traz a tona um dos acontecimentos que mais acomete a urbanidade: as mazelas causadas pelas crianças de rua. Seja no plano periférico, por eles retratarem uma parcela do país que está a margem dos direitos humanos. Como diz a fala de um dos sociólogos presentes no documentário: quantos Sandros existem por aí? Mas a cegueira coletiva não percebe.
O amarramento da narrativa documental se faz pelo flashback utilizado ao longo da exibição, estabelecendo uma busca cronológica no passado do seqüestrador Sandro do Nascimento. Padilha explica o motivo dos depoimentos: Os depoimentos colhidos, o levantamento dos dados e a investigação efetuada nos revela que as raízes do mal plantado naquela tarde carioca estavam profundamente fincadas nas mazelas sociais e econômicas do país.
A espetacularização do evento naquela tarde de 12 de junho de 2000 por meio de diversos meios de comunicação tem alguns dados interessantes: A TV Bandeirantes tinha 40 minutos de imagens gravadas do seqüestro; a Rede Record, 4 horas; e a TV Globo, 20 horas, pois deslocara quatro câmaras para a cobertura do episódio. Padilha comprou 50 minutos de imagens dessas emissoras para montar o filme. Ou seja, entrelaçar os diversos depoimentos deixou uma marca de extenso diálogo com a realidade social, sendo o seqüestro apenas a ponta do “iceberg”.
Uma das teorias da literatura fala sobre narração sumária11, aplicando esse conceito neste documentário, podemos perceber que Sandro teve uma série de artifícios para se tornar um dos exemplos corriqueiros da banalidade dos direitos sociais das crianças em voga em esquinas e praças de nossas cidades. Sumariamente o episódio da chacina da Candelária, que vitimou diversos meninos de rua na região da igreja no centro do Rio de Janeiro, inclusive o próprio Sandro, é um dos algozes responsáveis pela violação dos direitos do bem estar social contra crianças e adolescentes. Usar tal exemplo como justificativa do seqüestro em junho de 2000, não é a intenção do documentário, nem mesmo do proposto trabalho.
O filão de documentários centrados no envolvimento de crianças e adolescentes com a violência urbana, principalmente no campo do tráfico de drogas, pode ser visto em outras produções recentes. Notícias de uma guerra particular (1999) de João Moreira Salles e co-direção de Kátia Lund e Falcão: meninos do tráfico (2006) de MV Bill e Celso Athayde.
A intensidade da tomada documentária estabelece os parâmetros que vão conformar a imagem do popular, oscilando constantemente para as dimensões de um horror carregado de miserabilismo. O popular criminalizado surge na tela com imagens exasperadas, cheias de tensão, evolvendo a representação explícita, e em detalhe, dos aspectos mais degradantes da vida cotidiana das parcelas mais pobres da população brasileira. A criminalização e o miserabilismo são, portanto, pedras angulares na representação do popular no documentário brasileiro contemporâneo, calcadas na clivagem social que compõe, em essência, a sociedade brasileira. (RAMOS, 2008, p. 210)
O cenário deixa para trás a omissão do estado em fornecer aos meninos e meninas de rua uma oportunidade que não seja finalizada dentro do noticiário factual em forma das mais vastas violências. A agressão documental deixa o cenário paradoxal do Rio de Janeiro e sobe para o nordeste brasileiro, também com seus encantos naturais, mas igualmente paradoxais nas relações de crianças e adolescentes frente seus direitos.
Garapa retrata uma parcela mínima do problema da fome no Brasil, focado em três perspectivas diferentes do mesmo tema: a desnutrição na cidade grande, na cidade pequena e cidade longe de tudo.
Diferente do que normalmente se vincula ao senso comum a desnutrição não ocorre somente pela falta de comida, mas sim pela forma como as pessoas se alimentam. Neste quesito o título do documentário é auto-explicativo: Garapa é a mistura de água com açúcar preparada para alimentar as crianças. “O que explica dois fenômenos muito comuns: pessoas desnutridas e obesas, e o grave problema dentário que muitas crianças desnutridas têm”, conta Padilha.
O ponto alto da produção é que ela não é construída na sociologia em torno da forma, mas documenta a fome do ponto de vista de quem realmente a sente.
Na obra “Geografia da Fome”, escrito em 1946, Josué de Castro12 cria uma distinção entre a fome aguda, aquela em que as pessoas ficam sem comer nada e que em determinado prazo leva à morte, e a fome crônica (ou subnutrição crônica), que se manifesta em populações muito carentes de elementos essenciais da alimentação. Neste viés é que muitas crianças e adolescentes estão colocadas, padecendo de uma falta mínima do direito de qualquer cidadão: o acesso a uma alimentação balanceada.
O problema central de Garapa não é apenas denunciar as mazelas de uma parte do Brasil, sim mostrar pontos de encontro entre a realidade que muitas vezes não vemos. Como afirma o diretor: Gostaria muito que Garapa fosse um filme anacrônico, mas os dados mostram o contrário. Há três anos existiam 850 milhões em situação de insegurança alimentar no planeta, no ano passado eram 910 milhões, e a tendência é esse número aumentar porque o preço dos alimentos está subindo. Isso sem levar em consideração a crise financeira. É o contrário do anacrônico, portanto: é atual.


Conclusão

Com estes dois documentários de Padilha encontramos denuncias que estão propagadas em grande parte do Brasil. De um lado a violência contra crianças e adolescentes em crescente escala, no outro a questão da fome, muitas vezes as duas estabelecendo uma relação intrínseca.
Manuela Penafria, da Universidade da Beira Interior, em Portugal, define sobre o papel do documentário como linguagem e gênero audiovisuais. Mais do que simplesmente ser um “espelho do real”, o documentário promove discussões na sociedade e dá significado à realidade.
Calcado nisso podemos perceber que os referidos documentários de Padilha são cada dia mais atuais nas conversações necessárias para o enfrentamento das violações dos direitos humanos, principalmente no que tangem as crianças e adolescentes.

Referências
DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
DUARTE, Rosália. Cinema & educação: refletindo sobre cinema e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal ... o que é mesmo documentário? São Paulo: Editora Senac, 2008.





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